visão do tratamento

O grande desafio
de toda a medicina
moderna é
a personalização
do tratamento.

Na psiquiatria, ainda mais do que na medicina em geral, essa necessidade é indispensável, porque o modo como cada pessoa vive seu transtorno mental é especialmente único.

A Fenomenologia Dialética, método que eu utilizo, busca descobrir como as pessoas experimentam no seu mundo vivido ansiedades, depressões, obsessões, abusos de substâncias, dúvidas, culpa, ambição, esgotamento, decepção, autonomia, resistência, criatividade, etc. É crucial identificar o modo pessoal com que essas experiências são vividas.

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Como você compreende a clínica?

resposta:

A clínica psiquiátrica mistura algumas coisas da vida cotidiana das pessoas com aquele encontro que se dá numa condição protegida do tratamento, na qual há a incorporação de conhecimentos científicos. Mistura, assim, o técnico com o artístico.  Como existem divisões de profissões na sociedade, as pessoas estão acostumadas um pouco a que o psiquiatra faça um tipo de trabalho e que o psicólogo faça outro. Mas no rigor da clínica, esses trabalhos são muito parecidos, porque eles vêm menos de uma aplicação segura da “técnica” cientificamente elaborada, e muito mais do contexto do contato entre duas pessoas, da integralidade que ocorre entre duas pessoas.  

  • Do mesmo modo, é inútil levar muito a ferro e fogo a separação entre psicoterapia e terapia farmacológica ou de intervenção biológica. Tampouco separar essas duas de uma terapia do modo como a pessoa vive em seu mundo real. Todas essas dimensões estão profundamente interligadas e o psiquiatra deve, na verdade, ser o maestro que organiza o modo como essas dimensões devem ser ativadas e relacionadas entre si.

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Como o seu método fenomenológico dialético colabora com a clínica? 

resposta:

Essa pergunta é muito importante porque nos leva a falar daquilo que de fato interessa às pessoas que buscam um tratamento, que é o modo de se atingir um resultado satisfatório. A resposta precisa à sua pergunta seria muito longa e, por isso, eu vou me limitar a um aspecto crucial e imprescindível. A característica primordial do método fenomenológico dialético é o cuidado primoroso, quase obsessivo eu diria, com a questão do diagnóstico. Diagnosticar, em psiquiatria, é algo muito mais difícil do que a população leiga pensa.  

  • Com a proliferação de informações por meio das redes sociais, passou-se a ideia de que bastam dois ou três sinais e sintomas e já temos um diagnóstico claro. Veja-se o caso dos transtornos de déficit atenção e da depressão ou ansiedade, para ficarmos naqueles da moda. Todos acabam se identificando e se diagnosticando como portadores de déficit de atenção ou de depressão, dado o modo irresponsável com que se vem tratando os diagnósticos em psiquiatria. Na verdade, estes são muito difíceis de se fazer, pois dependem da somatória de vários fatores, que vão desde a queixa do paciente ou de seus familiares, do modo como estes interpretam essa queixa, passando pelo modo como o psiquiatra ou psicólogo entende a queixa, com sua linguagem técnica, culminando em uma tentativa de reconstrução diagnóstica a partir de um trabalho conjunto entre paciente e psiquiatra. Isso leva tempo, por vezes até meses. A psiquiatria fenomenológica dialética leva muito a sério esse processo diagnóstico, recusando qualquer simplificação. Assim, quando o procedimento clínico se inicia, ele se dá sobre um fundamento sólido de conhecimento, permitindo o estabelecimento de estratégias definidas e claras, avaliadas a partir do balanço entre os sinais e sintomas e os valores pessoais dos pacientes. 

Cada pessoa vai dar
um significado muito diferente para a mesma experiência e, por causa disso, a maneira como cada um toma suas decisões varia enormemente

Essa individualidade extrema determina uma grande dificuldade para o psiquiatra: ele deve utilizar-se de todo o conhecimento científico disponível e, ao mesmo tempo, adaptá-lo precisamente àquela pessoa, naquelas condições específicas irreprodutíveis.

A associação entre as formas do transtorno mental e as formas com que a pessoa que dele padece o processa e valoriza é a tal ponto única e irreprodutível que podemos dizer que cada tratamento psiquiátrico tem sua própria impressão digital.

A PSIQUIATRIA FENOMENOLÓGICA DIALÉTICA  é, um modo de se performar a psiquiatria em que se associam todos os conhecimentos originários das ciências biológicas com aqueles das ciências humanas, produzindo um amálgama capaz de ficar à altura das complexidades da pessoa humana em suas situações de transtornos mentais.

É essa forma
de psiquiatria de precisão
que venho desenvolvendo
em minha carreira
de mais
de três décadas.

O clínico precisa ser capaz
de identificar do que a pessoa sofre e do que ela precisa, respeitando aquilo que está
em harmonia com seu estilo
de vida.

O interesse humanista que sempre me motivou encontrou no atendimento às pessoas necessitadas de tratamento um campo fértil e inesgotável de atenção.

Esse olhar contribui
para que muitas pessoas
que enfrentam desafios psicológicos encontrem
seu sentido de vida.

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poderia dar um exemplo sobre as características do tratamento a partir deste método?

respostA:

Claro. Vamos usar o caso da depressão, que é muito comum. Na realidade, seria importante que a população tivesse consciência de que deveríamos falar de depressões, no plural, dada a diversidade de condições que são identificadas por esse nome. No entanto, essa diversidade pode ser dividida em dois grandes grupos, o das depressões melancólicas e a das demais depressões, que denomino desenvolvimentais, pois tem a ver com o desenvolvimento da vida da pessoa. Nisso, a força de diagnóstico da fenomenologia dialética é crucial, pois permite discriminar os dois grupos. E por que é importante separá-los? Vou aqui mencionar apenas o caso das depressões melancólicas, para que o texto não se torne longo demais. 

  • Veja, em primeiro lugar, porque o grupo das depressões melancólicas é o que melhor reage ao uso de antidepressivos, fazendo com que essa fase inicial farmacológica seja imprescindível e deva começar logo. Em segundo lugar, porque com frequência essas depressões surgem em um tipo de personalidade que tem características bem conservadoras, são pessoas ligadas à família e ao trabalho. Assim, ajudá-los na retomada da vida exige que saibamos que não devemos estimular grandes mudanças estruturais. Pelo contrário, nossa ação como clínico deve se concentrar em auxiliá-los em obter prazer nas pequenas coisas do cotidiano, aquelas que gostam de fazer. Há casos de depressões, as não melancólicas, em que é exatamente o oposto que o clínico deve fazer, de acordo com a estrutura da personalidade da pessoa e o tipo de depressão. Assim, em síntese, importa muito dizer que o tratamento fenomenológico dialético permite um ajuste preciso na forma de tratamento das depressões. 

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como você entende
o problema
e o tratamento do abuso
de substâncias ou outros comportamentos que geram dependência?

resposta:

Nesses casos, é importante diferenciar entre alguém que está tendo um comportamento de abuso e alguém que já tem uma adição, que é o nome melhor para uma dependência. Os comportamentos abusivos ou de risco nascem de um descontrole no uso de uma droga (ou comportamento), lícita ou ilícita, sem que haja uma alteração psicológica concomitante. Por exemplo, é o caso de alguém que bebe demais e não cumpre seus compromissos familiares ou profissionais, produzindo danos a si mesmo e ao seu entorno. Por outro lado, na adição, já há uma modificação do modo como a pessoa vive a realidade. Nesses casos, que são mais graves, a pessoa perde a capacidade de vislumbrar um futuro, ou torna-se incapaz de discernir toda a complexidade de seu comportamento. Consideradas essas diferenças, é claro que o tratamento tem sentidos diversos. No uso abusivo, procura-se junto ao paciente levantar todas as condições de risco e construir estratégias para mitigá-las ou evitá-las. Constituem a maioria dos casos e nem sempre uma abstinência total do uso da substância é necessária. Por outro lado, nas adições, raramente não é imprescindível se buscar um período de abstinência, para que a pessoa retome as condições de análise de sua própria vida.

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vejo que no seu trabalho há uma importância muito grande dada à identificação dos estilos básicos de existir. pode falar mais sobre isso?

resposta:

Sim, esse é um tema central em meu trabalho. Veja, embora nós todos sejamos pessoas singulares e, portanto, distintas umas das outras, temos certas características comuns que nos fazem aproximar a um grupo típico. Por exemplo, se eu sou uma pessoa muito medrosa, tenho características comuns a outras pessoas assemelhadas, que me fazem pertencer ao grupo dos medrosos. Clinicamente, saber disso é muito importante, pois auxilia e muito na construção das diretrizes de um tratamento. São os tipos que nos dão as melhores diretrizes para um tratamento, principalmente enquanto não conhecemos em detalhe uma pessoa. Essa formulação em especial eu desenvolvi, a partir da minha interpretação da psicopatologia fenomenológica, que resultou no método fenomenológico dialético. Surgiu principalmente da experiência clínica, pois para ajudar as pessoas foi necessário enxergá-las melhor.

Quais são os temas que orientam suas pesquisas atuais?

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resposta:

Meu interesse atual concentra-se justamente no aperfeiçoamento do olhar fenomenológico sobre os transtornos mentais, tanto para a orientação do diagnóstico como para o tratamento. Venho desenvolvendo o que se chama de fenomenologia dialética, um modo de construir o conhecimento e o cuidado clínico que privilegia a existência como movimento, transição e desenvolvimento contínuo.

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Você poderia discorrer
um pouco mais acerca
da relação entre
psicopatologia
e as humanidades?

resposta:

Entendo esse espaço, olhando de uma maneira historicamente ampliada, como uma retomada da necessária participação das Humanidades no cenário da saúde mental, para não se dizer saúde como um todo. Nesse sentido, sou otimista com essa volta do pêndulo epistemológico da medicina para o polo humano.

[ entrevista para a Medical Review ]